Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

Mata ciliar – parte I: da metragem ao sonho, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

Publicado em setembro 9, 2011 por HC [EcoDebate] É mais do que conhecido o fato de os conceitos ficarem prejudicados quando as discussões se acirram. Nos embates recentes sobre o novo Código Florestal, onde a emotividade já superou qualquer limite racional, os conceitos viraram uma salada de componentes altamente indigestos. E aí aparece a mata ciliar, coitada, que virou a heroína capaz de, sozinha, salvar os nossos recursos hídricos. Já escrevi, há tempos, um artigo falando sobre as angústias da mata ciliar, onde, tendo voz, ela reclamava de expectativas que ela não teria condições de atender.

Mas, antes de tudo, vamos falar um pouco sobre conceitos relacionados com a mata ciliar. Ela é composta essencialmente de vegetação arbórea, típica da região, que ocupa uma faixa em torno de nascentes e corpos d’água, chamada de área ripária. Riparia é uma palavra que pode ser derivada do adjetivo “ripário”, que significa marginal, ou seja, em nosso caso, marginal aos corpos d’água. Há informações, também, que a origem é latina e está relacionada com bancos de areia. Em nenhum deles, evidentemente, há referências a metragens. Estas foram invenções dos formuladores do Código Florestal de 1965, que acharam que a lei, para ser aplicável, com os conhecimentos e as ferramentas disponíveis na época, precisava de uma ferramenta prática para ser operacionalizada. Vieram os números, que não demonstravam nenhuma base científica, por mais que alguns tentem, nos dias de hoje, provar o contrário. Mas mesmo que aceitássemos as bases científicas da época, elas não fazem mais sentido atualmente, pois de lá para cá houve uma revolução nas tecnologias relacionadas com o assunto, tornando as metragens um atentado ao pensamento lógico. As árias ripárias de interesse ambiental só deveriam ser definidas em zoneamentos agroecológicos, no meio rural, e nos planos diretores das cidades, guardadas as peculiaridades dos ecossistemas locais e dos processos produtivos e de ocupação. Metragens puras e simples, ainda mais sendo as mesmas para todos os biomas e ecossistemas brasileiros, em nosso estágio científico e tecnológico, são burrices imperdoáveis.

Esclarecido o posicionamento físico da mata ciliar e feitas algumas considerações pertinentes, vou prosseguir falando um pouco sobre o seu comportamento ambiental e hidrológico. Comecemos pela compreensão da Figura que faz parte deste artigo.

Nela está representada a encosta de uma pequena bacia hidrográfica mantenedora de um córrego. Se há uma nascente e um córrego, fica caracterizada a presença de um aquífero (lençol) subterrâneo responsável pelos respectivos abastecimentos. Normalmente, nas condições brasileiras, o aquífero formador e mantenedor é freático, ou seja, ele está livremente apoiado sobre camada de rocha impermeável (ci) e apresenta variações de volumes armazenados entre períodos consecutivos de chuvas e de estiagens. Nos aquíferos confinados, também conhecidos como artesianos, as variações tendem a ocorrer em períodos mais longos. Durante as chuvas, parte dos volumes precipitados pode escoar sobre a superfície formando as enxurradas (ex), indesejáveis por promoverem erosões, cheias, alagamentos e inundações. Outra parte infiltra (f) no solo e pode chegar ao aquífero (aq), garantindo vazões do córrego (c) durante os períodos de estiagens. Quanto mais água no aquífero, tanto melhor, portanto.

Um detalhe importante a ser observado na Figura é o fato de o aquífero poder, teoricamente, receber água
infiltrada em toda a superfície da pequena bacia e não só nos topos de morro e nas áreas ciliares. Não sei de onde veio o conceito, citado constantemente, que área de recarga de aquífero é o topo de morro. No caso, a maior área superficial de abastecimento do reservatório subterrâneo está sendo usada para exploração agropecuária (ag). Os aquíferos, quando mantenedores de nascentes e córregos, têm inclinações em relação a estes, mesmo que pequenas, facilitando a movimentação da água infiltrada em suas direções, conforme indicam as setas posicionadas ao longo do aquífero representado não Figura.

(Figura)


c – córrego ac – área ciliar
tm – topo de morro ag – área de exploração agropecuária

ci – camada impermeável ex – enxurrada

f – infiltração aq – aquífero subterrâneo

Figura – Ciclo hidrológico aplicado à encosta de uma pequena bacia hidrográfica

Ninguém pode renegar os benefícios ambientais promovidos pela mata ciliar (na posição ac da Figura), incluindo, certamente, o acolhimento da biodiversidade regional, o abrigo da fauna, a participação nos corredores ecológicos, a garantia de proteção do leito maior dos cursos d’água e alguma proteção da qualidade da água que ocorre em tais faixas das superfícies das bacias hidrográficas. Mas muitos insistem em generalizar a sua importância quanto à manutenção de quantidades de água nas nascentes e nos cursos d’água. O que eu quero deixar claro é o seguinte: a mata ciliar, do jeito que está definida no antigo Código Florestal e no novo proposto, não tem nenhuma ação positiva no aumento de quantidade de água das nascentes, dos córregos e dos poços provenientes dos lençóis freáticos, em épocas de estiagens. A quantidade de água infiltrada nessas pequenas faixas marginais é rapidamente drenada (vide Figura ) e atinge os mesmos pouco tempo depois das chuvas, não restando nenhum armazenamento para os períodos de estiagens. Às vezes somos enganados pela condição de umidade constante em tais faixas, mesmo em época de seca na região, atribuindo tal umidade à infiltração nelas ocorrida no período antecedente de chuvas , quando, na verdade, tal umidade é mantida pela água infiltrada em outras áreas da pequena bacia hidrográfica e que se movimenta lentamente em direção das nascentes e dos córregos. As faixas onde se encontram as matas ciliares são áreas de passagem da água do lençol em sua caminhada para os pontos de emergência e, por essa condição de contínua alteração e movimentação, são conhecidas como “áreas de contribuição dinâmica”. Os princípios hidrológicos, portanto, derrubam o sonho acalentado por muitos, ou seja, o de usar os serviços ambientais das matas ciliares para aumentar a produção de quantidade de água de nascentes e córregos.

Sei que a esta altura muitos já estão pensando na produção de água das nascentes e dos córregos que se encontram em pequenas bacias cobertas de matas naturais e gostariam de perguntar: 1) Afinal, qual é a relação das matas naturais com a quantidade de água produzida em suas áreas de ocorrência? 2) As matas ciliares também não são matas naturais?

Em outro artigo, a ser publicado aqui mesmo e em breve, prometo comentar as interações entre a vegetação e a água no solo e no subsolo das zonas ripárias. Vou discutir, também, as diferenças de comportamentos hidrológicos entre bacias hidrográficas florestadas e aquelas com atividades agropecuárias e matas ciliares. A intenção é, se possível, iniciar uma discussão mais técnica sobre o assunto, com linguagem de divulgação científica, para facilitar a participação e compreensão daqueles que não podem ou não querem mergulhar nos textos publicados sobre o assunto nas revistas científicas.

Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas e professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV); colaborador e articulista do EcoDebate. valente.osvaldo@gmail.com

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