Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

Reflorestamento no Xingu I

01.08.2010


Milhares de hectares das florestas que protegiam as nascentes do rio Xingu, em Mato Grosso, foram desmatados. Agora os próprios índios estão ajudando os fazendeiros a reflorestar essas áreas.

A bacia do rio Xingu, em Mato Grosso, enfrenta um sério problema: uma área de 300 mil hectares das florestas que protegiam suas nascentes foi desmatada para o plantio de capim e soja. Nós mostramos isso no domingo passado.


Agora você vai ver como os próprios índios do parque do Xingu estão ajudando os fazendeiros a reflorestar essas áreas. A reportagem é de Ivaci Matias e Francisco Maffezoli Junior.

A cidade de Canarana, no nordeste de Mato Grosso é vizinha do parque indígena do Xingu. O município tem um milhão e setecentos mil hectares e faz parte da nova fronteira de produção de soja do estado.

Os desmatamentos para a formação das lavouras chegam até a divisa do parque. O problema é que durante a abertura das áreas muitos agricultores avançaram nas matas ciliares dos riachos que alimentam o rio Xingu. Hoje eles estão sendo pressionados a fazer a recuperação dessas áreas, chamadas de APPS, áreas de preservação permanente.

A secretária da Agricultura de Canarana Eliane Feltem dá a dimensão do problema. “Nós temos aproximadamente 30 mil hectares que são necessários fazer a recuperação. Isso não quer dizer que as margens dos rios estão totalmente desprovidas de vegetação, apenas esta vegetação não está na largura que prevê a lei, que é de 50 metros, no caso do leito do córrego do rio e cem metros no caso da cabeceira”, explica.

Seu Arlindo já decidiu fazer a recuperação desta área ao longo do rio que corta sua fazenda. Ele cercou o lugar e plantou crotária, uma leguminosa que está em floração.

Além de fornecer nitrogênio para o solo, ela está fazendo sombra para as árvores nativas que ele plantou no meio. Quando completar o seu ciclo a leguminosa vai morrer e dar espaço para as árvores.

Seu Arlindo não usou mudas e sim sementes que foram colocadas diretamente no solo. O processo é mais barato, mas exige uma quantidade muito grande de sementes. E haja sementes para recuperar os trinta mil hectares de Cananara e mais 270 mil desmatados em toda a bacia do rio Xingu.

Depois de tanto derrubar a floresta, hoje, para conseguir sementes, os agricultores têm que apelar para a reserva do parque indígena do Xingu.

A convite do Instituto Sócioambiental, organização não governamental que trabalha com os índios, quatro etnias do parque estão trabalhando na coleta de sementes. A campanha leva o nome de Y Ikatu Xingu, que na língua dos índios quer dizer: “Salve a água boa do Xingu".

Vamos conhecer o trabalho dos índios ikpenges. Eles eram guerreiros que viviam no norte da região amazônica disputando território com outras tribos. No final do século 18, eles migraram para o Mato Grosso e se fixaram nas margens do rio Jatobá. Foram transferidos para o parque indígena do Xingu em 1967, pelos irmãos Villas Boas.

Os ikpenges falam uma língua da família caribe. O primeiro contato deles com o homem branco se deu no início dos anos sessenta. Fotos da época mostram o sertanista Orlando Villas Boas trocando presentes com eles.

Na época, Paikuré, tinha uns 18 anos e diz que nunca vai esquecer a cena de Orlando Villas Boas chegando na aldeia. “Eu armei o arco e já ia atirar a fecha no peito dele. Ele tinha uma figura estranha, aquela barba, parecia um bicho. Aí ele ergueu os braços e vi que era um amigo...”, conta.

Hoje a tribo ikpeng tem 400 índios, na maioria jovens que trabalham na coleta de sementes. No caminho até a floresta passamos pelo mandiocal, principal cultura da tribo, que também cultiva abacaxi. Os produtos da roça servem apenas para o sustento deles.

Já a extração de sementes passou a ser uma fonte de renda. Tudo que coletam é comercializado na cidade de Canarana. Para escolher as espécies mais importantes os ikpenges fizeram um mapeamento da floresta como explica o Oremé.

“Uma marca indica que no local tem um recurso importante para nós, agora eu vou colher esta fruta que nós consumimos como sucos ou a própria polpa”, diz.

Seu nome em português é pitomba. Frutinha muito doce típica da zona de transição entre o cerrado e a Amazônia. Elas ficam bem no alto. Chegar até lá para coletar as sementes não é nada fácil.
Oremé orienta o Wayge que foi escolhido para escalar a árvore. Paykuré está preocupado. “Ele pediu para eu prestar atenção, pra ver vespa, e também choveu e pode escorregar”, diz. Eles comem a polpa e guardam os caroços num saco plástico.

Depois o grupo muda de área. A caminhada é longa até o centro da floresta onde estão as árvores maiores. No meio do caminho uma nascente brota da terra. Água limpinha pra matar a sede.

Depois de duas horas mata a dentro, chegamos na área da coleta. A árvore é um Angelim Saia. Suas sementes estão dependuradas lá no alto. Elas surgem em pencas presas nos cipós. De novo o pessoal vai ter que escalar a árvore para fazer a coleta. Waygé dá uma olhada e desiste da empreitada.

O engenheiro florestal Marcos Schmidt do Instituto Sócioambiental coordenou o treinamento deles para este tipo de situação. A técnica usada é o rapel. Oremé amarrou uma chumbada na ponta de uma linha de pesca e vai atirá-la de estilingue no galho mais forte da árvore.

Acerta de primeira e depois puxa a linha de volta para amarrar suas cordas e levá-las lá em cima. Depois testa para ver se aguenta o peso do Oremé. Ele veste seu cinturão e vai encarar a subida. A chegada se deu bem no meio dos cachos de sementes. Lá do alto Oremé faz sinal de que está tudo bem.

Usando um alicate de poda ele começa o serviço e o restante do pessoal vai juntando. Marcos Schmidt mostra as sementes do Angelim e diz que o preço pago para os índios pela coleta varia de cinquenta centavos a quinhentos reais o quilo. “O quilo de uma semente grande, são poucas sementes. O quilo de uma semente bem miudinha são milhares, então esta questão também influencia no preço. Além do valor monetário, eu acho que a experiência e o reconhecimento deles nesta luta de recuperação esta região, que foi muito desmatada, eu acho que isso é o maior benefício para eles também”, diz.

Missão cumprida e Oremé recebe o aplauso do pessoal. Na próxima reportagem você conhece as árvores plantadas com as sementes colhidas pelos índios do Xingu, a muvuca de sementes: técnica desenvolvida para fazer o plantio de uma floresta usando a mesma máquina que semeia as lavouras de soja, e a história de um garoto que convenceu o pai dele a recuperar a área degradada da fazenda.

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