Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

“A teologia do livre mercado dos Chicago Boys” /// Envolverde - Carta Capital

por Michael Hudson*

Recentemente vários acadêmicos receberam uma petição assinada por 111 membros da Universidade de Chicago explicando que, “sem qualquer comunicado, a sua própria comunidade, (a universidade) contratou uma firma de Boston, a Ann Beha Architects, para reformar o prédio do Seminário Teológico de Chicago, transformando-o no espaço para o Milton Friedman Institute for Research in Economics (MFIRE – Instituto Milton Friedman de Pesquisa em Economia), e levantou uma agressiva campanha de arrecadação de fundos para o controverso instituto”.

Seria difícil encontrar uma metáfora mais adequada do que aquilo que o comunicado à imprensa caracteriza como “conversão do prédio do seminário num templo do neoliberalismo econômico”. Até o acrônimo MFIRE parece simbolicamente apropriado. O “M” pode bem servir para Money, na equação do professor Friedman: MV = PT (Money x Velocity = Price x Transactions). E o setor Fire compreenderia finanças, seguros e investimentos imobiliários – o setor do “almoço grátis”, cuja acumulação os monetaristas de Chicago celebram.

Economistas clássicos caracterizaram a renda e o acúmulo de lucros no setor Fire como “renda não recebida”, liderada pelos ganhos de capital, que John Stuart Mill descreveu como o que os senhores da terra fazem “quando estão dormindo”. Milton Friedman, por outro lado, insistiu que “não existe almoço grátis” – como se a economia não dissesse afinal respeito ao almoço grátis e a como obtê-lo. E a principal maneira de ganhá-lo é desmantelando o papel do governo e vendendo o patrimônio público a crédito.

Como disse ironicamente Charles Baudelaire, o demônio vence no ponto em que convence o mundo de que ele não existe. Parafraseando isso, podemos dizer que a vitória econômica dos rendimentos do almoço grátis obtém-se no ponto em que os reguladores governamentais e os economistas acreditam que seu retorno não existe – e, portanto, não precisam ser taxados, regulados ou subjugados.

Com “livre mercado”, os Chicago Boys querem dizer conceder livre trânsito ao setor financeiro – na direção oposta à idéia dos economistas clássicos de libertar os mercados do rentismo e dos juros. Enquanto a religião tradicional buscou estabelecer preceitos de regulação, o Instituto Friedman vai promover a desregulação. Substituir fisicamente a escola de teologia por um “templo do neoliberalismo econômico” é irônico se considerarmos que, em princípio, aquilo que todas as grandes religiões têm em comum em um ponto ou o outro é a oposição à cobrança de juros. O judaísmo chamou a isso de “começar do zero” (Levítico, 25) e o cristianismo baniu completamente o juro, citando as leis do Êxodo e do Deuteronômio.

Os Chicago Boys então inverteram a teologia tradicional, embora a economia tenha começado a ser ensinada como disciplina acadêmica em cursos de filosofia moral, nos séculos XVIII e XIX. As mais importantes universidades do mundo foram fundadas para formar estudantes para o clero. O curso de filosofia moral envolvia política econômica e lidava vastamente com as noções de reforma econômica e taxação da acumulação de capital financeiro em nome do interesse público como uma prerrogativa legal. A disciplina era jogada no rol da “economia” em boa medida para excluir dela as análises políticas e as distinções entre investimento produtivo e improdutivo, bens de capital e reais, valor e preço.

Os economistas clássicos viam o rentismo e os juros como remanescentes da conquista da Europa feudal da terra. E viam a privatização do dinheiro e das finanças como uma dívida institucionalmente baseada e monopolizada. Os economistas clássicos procuraram taxar essa “renda não recebida” para regular os monopólios naturais ou torná-la de domínio público.

Desnecessário dizer que essa história do pensamento econômico não será ensinada no Centro Friedman. A primeira coisa que os Chicago Boys fizeram no Chile, quando lhes foi dado o poder depois do golpe militar de 1973, foi fechar todos os departamentos de economia do país – e, de fato, todos os departamentos de ciências sociais fora da Universidade Católica, na qual eles mandavam. Eles entenderam que “livre mercado” para o capital exigia controle total do currículo educacional e da mídia cultural como um todo.

O que os livres mercados entendem é que sem uma autoridade inquisitorial você não pode ter um livre mercado “estável” – quer dizer, um livre mercado para os predadores financistas que presumivelmente são os maiores financiadores do Centro Friedman da Universidade de Chicago. Os monetaristas da Escola de Chicago detiveram poder de censura sobre os maiores jornais de referência em economia, e publicar neles tornou-se pré-condição para o progresso na carreira de economistas acadêmicos. O resultado tem sido limitar o escopo dos economistas para a celebração da escolha racional do “livre mercado” e da mente estreita da ideologia do “direito e da economia” oposta às idéias da justiça moral e da regulação econômica que formaram a base de tantas religiões do Ocidente.

Eu experimentei esse espírito inquisitorial quando trabalhava no Laboratório da Escola da Universidade de Chicago. Lembro do grande cartaz dependurado acima do quadro-negro da sala Mr. Edgett, de ciências sociais, em 1953: “Dê a todos eles o que os Rosenberg receberam”. Depois que o Ato da Liberdade de Informação tornou os arquivos do FBI públicos, meus colegas de classe tiveram acesso aos relatórios sobre eles e suas orientações políticas, escritos por professores da Universidade de Chicago e seus associados no Shimer College.

Quem teria antecipado que a economia iria terminar sendo mais de direita e autoritária, mais explicitamente oposta à idéia mesma de direitos humanos e justiça distributiva do que a teologia? Ou esta última disciplina teria sido então invertida? Os economistas clássicos eram reformistas, afinal de contas, lutando pelo mercado livre contra a “renda não recebida” – o “almoço grátis” da renda da terra das aristocracias herdeiras da Europa e contra o monopólio rentista administrado pelas corporações de comércio real criadas por governos europeus a fim de pagar suas dívidas de guerra. Mas os monetaristas de Chicago buscam desregular os monopólios e as leis de usura, favorecendo o rentismo em vez da economia “real” do trabalho e do capital. Seu foco é na defesa do lucro da propriedade e das finanças e no compromisso com os dispositivos de garantia – empréstimos bancários, ações e títulos, para os quais exigem corte de taxação. E, para fomentar o mercado de alavancamento de ações, os Chicago Boys defenderam a privatização do patrimônio público, começando no Chile, depois de 1973.

Assim, o que se inverteu não foi apenas a idéia clássica de mercados livres, mas o coração econômico dos primórdios da religião. Hoje, os Chicago Boys consideram que quem mais precisa de salvação são a alta finança, o investimento imobiliário e os monopólios, na sua luta para reverter os sete séculos passados de reforma econômica clássica, desde que o papa debateu como definir um “preço justo” (custos socialmente necessários da produção) com que os bancos deveriam arcar, no século XIII.

Essa medida parece tratar largamente do levantamento de fundos. Mas essa não é a verdade da maior parte das religiões em nossos dias? A Universidade de Chicago foi financiada por John D. Rockefeller, dando a deixa para Upton Sinclair chamá-lo de “o Standard Oil da Universidade” no The Goose Step, a Study of American Education. Quando eu trabalhei lá, nos anos 50, Lawrence Kimpton tinha substituído Robert Hutchins como chanceler e, em 1961, tornou-se gerente geral de planejamento (e subsequentemente, diretor) da Standard Oil de Indiana. Seu ato mais famoso (fora a supervisão do projeto da bomba atômica Manhattan) foi suprimir a The Chicago Review, que publicava excertos do Almoço Nu, de William Burroughs. Significativamente, a razão que ele deu era que a publicação poderia desencorajar a doação de fundos para a universidade.

Mr. Rockefeller, ao menos, pôs devidamente sua suspeita sobre “aqueles que necessitam”. Num espírito contrastante, a esposa de Herman Kahn me disse que certa vez, numa festa, Milton Friedman respondeu à sua sugestão de melhorias no bem-estar público e na assistência em saúde do seguinte modo: “Por que você quer subsidiar a produção de órfãos e pessoas doentes?”. Esse não é exatamente o espírito religioso clássico.

O problema com o Instituto Friedman é que sua doutrina econômica obteve notoriedade no período Pinochet, na onda dos Chicago Boys no Chile. Privatizar empresas públicas, “libertar” mercados de leis abusivas e induzir a desregulação são a antítese de quase todas as religiões, cujas diretrizes propostas, afinal, eram socializar seus membros e criar um estado moral.

O monetarismo friedmanista tem caracterizado a ideologia pós-moderna, que, como a religião, tem suas próprias vacas sagradas e ídolos – e uma Inquisição. Em vez de suspeitar dos descrentes, como no Islã, temos a transferência da cobrança de impostos da religião do capital financeiro para o trabalho que está do lado de fora do templo. Como disse o comunicado de imprensa: “Grande protesto... Focou-se no ataque ao forte viés ideológico do instituto, orientado para o fundamentalismo de mercado, na tradição de Friedman. Dessa maneira ou de outras, sua natureza vai ao encontro da tradição da universidade de livre investigação e livre debate”.

Bem, eu não estou muito certo quanto a como essa tradição recente de livre debate ocorreu. Mas o comunicado conclui com uma nota, dizendo: “Para mais informações, contatar Robert Kendrick, professor de música (rkendric@uchicago.edu, 773-702-8500), ou Bruce Lincoln e Caroline E. Haskell, professores de história das religiões (blincoln@uchicago.edu, 773-702-5083)”.

* Michael Hudson foi economista de Wall Street e atualmente é um pesquisador destacado na Universidade do Missouri – Kansas City (UMKC) e presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (Islet). É autor de obras como Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire e Trade, Development and Foreign Debt: A History of Theories of Polarization versus Convergence in the World Economy.

Fonte: Envolverde/Carta Maior

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