Carta da Terra

"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações." (da CARTA DA TERRA)

De animal se faz o homem /// Revista Forum

21/05/2010 - 10h05
Por Sulamita Esteliam*

A animalidade é uma característica própria do ser humano. Só que o macho bípede não-emplumado, ao contrário do que ocorre no reino dito selvagem, consegue ser mais violento do que a fêmea, particularmente no ambiente doméstico. Na rua, entre seus pares, o valente espancador e/ou matador de mulheres e crianças pode até arrotar vantagem, mas costuma baixar a cabeça e enfiar o rabo entre as pernas diante de um predador, ou de quem grite mais alto do que ele.

Traduzida em violência, de qualquer natureza, a macheza nada mais é do que a outra face da covardia. Só os covardes, destituídos de amor próprio, usam a força física ou a incontinência verbal ou a instabilidade emocional e a morte como armas de destruição. Quem ama a si próprio, ama ao outro. E quem ama cuida, preserva, respeita, não machuca, não mata.

Dia 13 de maio, depois de 21 anos e um mês de omissão, o Poder Judiciário levaria a julgamento, no Fórum de Jaboatão dos Guararapes, Grande Recife, Pernambuco, o comerciante José Ramos Lopes Neto. Trata-se de assassino confesso da estudante universitária, Maristela Just, então com 25 anos, sua ex-mulher. José Ramos a executou com cinco tiros, dia 04 de abril de 1989. Fê-lo em casa dos pais da moça, para onde ela se retirara há dois anos. Pior, fê-lo na frente do casal de filhos – um bebê de dois anos e uma menina com quatro anos de idade. Sobrou bala para as crianças – na cabeça e no ombro, respectivamente. Sobrou, também, para um tio materno, Ulysses, que tentou defender a irmã e os sobrinhos. Sobreviveram os três, felizmente.

O tio veio a falecer recentemente, de causas naturais, apesar de ter carregado o projétil alojado na coluna durante todos esses anos. Os agora jovens adultos guardam as sequelas físicas, piscológicas e emocionais do desatino paterno. O pesadelo de terem visto a mãe sangrar pelas mãos de quem os ajudou a vir ao mundo junta-se à consciência da tentativa de parricídio. E soma-se à indignação gerada pelo sentimento de impotência frente à impunidade. Não há bálsamo que possa curar tal dor. Ainda que eles, ao contrário do pai, possam ter tido a benção de desenvolver compaixão. Apesar de tudo.

Preso em flagrante, o assassino confesso, José Ramos Lopes Neto, ficou na cadeia pouco mais de um ano. Um habeas corpus lhe devolveu a liberdade. Os conhecimentos, privilégios e relações jurídicas do pai, o advogado criminalista de renome, Gil Teobaldo de Azevedo, sustentaram o banho-maria do processo por mais de duas décadas. Apesar do pronunciamento pela Justiça, em 2002.

José Ramos Lopes Neto matou a mulher por ciúmes, por incapacidade de lidar com a rejeição advinda de anos de maus tratos, segundo a família da moça. Prejudicou a vida dos filhos e, no mínimo, virou do avesso o universo dos familiares de Maristela. A despeito disso, pôde tocar a vida como se não tivesse que prestar contas de seus atos à sociedade, e talvez nem a si mesmo. Dificil imaginar que uma pessoa, com a capacidade de fazer o que fez, possa vir a ser atormentada pela culpa.

O avô das crianças que assistiram ao pai trucidar a mãe, e se tornaram, elas próprias, alvos e vítimas, se diz advogado de defesa do filho, embora seja outro o nome que consta como defensor. De qualquer forma, cumpre duplo e maquiavélico papel, e o faz com gosto. Às vésperas do dia marcado para início do julgamento, fez questão de mostrar que manter a ferida sangrando não só é parte de sua estratégia, como é profissão de fé. Dia 12, em entrevista no programa Geraldo Freire, na Rádio Jornal, e dia 13, no Jornal do Commmercio, o causídico Gil Teodoro bradou, para todo Pernambuco, sem o menor constrangimento: “Se não matasse, não comia na minha mesa”.

Segundo ele, “um homem tem que estar acima das circunstâncias, tem que ter brio, dignidade, tem que preservar a honra”.

Eis a velha tática de transformar vítima em ré, tão cara aos arautos, aos porta-vozes do injustificável. Ao insurgir-se contra a memória de Maristela Just, o advogado de 77 anos – idade não é garantia de nada – não só justificou todos os abusos do filho contra ela, em vida. Matou-a pela segunda vez. O filho dele, ‘José’, não soube estar acima das circunstâncias. Não deu à ex-mulher o direito de escolha. Entretanto, traçou sua própria sorte, e tem que pagar por seus atos.

Em mais uma manobra pela impunidade, contudo, Teobaldo conseguiu que o julgamento fosse adiado, novamente, desta vez para dia 1º de junho. Réu e advogados – o oficial, Humberto Albino de Moraes, e o de fato, que é o pai - não compareceram ao fórum na quinta-feira, 13 de maio. A juíza Inês Maria de Albuquerque Alves, da 1ª Vara do Júri de Jaboatão, nomeou defensor público para garantir que o júri popular aconteça na nova data. Se José Ramos Lopes Neto não se apresentar dia 1º de junho, será julgado à revelia. É o que garante a magistrada e a promotora, Natália Campelo. É o que espera a sociedade pernambucana que, como a família da vítima, clama por justiça.

Entretanto, não se pode fugir do fato de que, para defender sua cria, o pai-advogado, Gil Teobaldo, vale-se de brechas jurídicas do nosso Código Penal. Mas vai além: não se importa em destilar preconceitos, arrogância e falta de escrúpulos. Termina por afrontar a lei, a ordem natural das coisas, os sentimentos da família, a dor dos próprios netos, a opinião pública, a Justiça - por mais cega que esta seja. Eis uma circunstância na qual cabe, feito luva, a expressão “tal pai, tal filho”.

*Sulamita Esteliam é jornalista e escritora. É autora dos livros Estação Ferrugem, romance-reportagem que resgata a história da região operária de Belo Horizonte-Contagem, Vozes, 1998; Em Nome da Filha – A História de Mônica e Gercina, romance-reportagem sobre um caso assombroso de violência contra mulher em Pernambuco; e o infantil Para que Serve Um Irmão, os dois últimos ainda inéditos.
(Envolverde/Revista Fórum)

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